OS DISCÍPULOS ALEGRARAM-SE AO VER O SENHOR
(Jo 20,19-31)
Meus caríssimos irmãos, O Senhor lhes dê a paz!
Neste ano, eu gostaria de partilhar com vocês uma mensagem que possa colocar-se no contexto celebrativo dos 800 anos do encontro entre Francisco de Assis e o Sultão do Egito, al-Malik-al-Kamil. Uma comemoração como esta ofereceu à Igreja e à Ordem a oportunidade extraordinária de abrir espaços de reflexão e estudo no âmbito do diálogo aberto e respeitoso com o Islã e, naturalmente, com as outras confissões religiosas.
Portanto, aproveitando o ensejo do que escrevi no dia 07 de janeiro passado em uma carta a toda a Ordem a propósito deste importante aniversário, eu gostaria de convidar a vocês a viverem o mistério da paixão, morte e ressurreição do Senhor à luz deste particular acontecimento que nos estimula a abandonar o medo e a abrir literalmente as portas da nossa mente, permitindo que Deus aja de modo novo no coração dos homens e mulheres de boa vontade que, indistintamente, lutam por promover, em benefício de todos os homens, a justiça social, os valores morais, a paz e a liberdade (cf. Nostra Aetate n. 3). Permitam-me, então, voltar o olhar para uma passagem do Evangelho que teremos ocasião de escutar no segundo domingo da Páscoa. Trata-se de uma das aparições de Jesus ressuscitado a todos os discípulos reunidos no cenáculo “na tarde daquele mesmo dia, o primeiro depois do sábado”, segundo a versão de João (Jo 20, 19-31). Na realidade, este texto narra duas aparições separadas por um arco de tempo de oito dias. Creio que estes dois episódios nos ajudarão a estabelecer um contexto espaço-temporal que permitirá compreender melhor a maturação da fé não só de Tomé, mas de todos os discípulos que tiveram o privilégio de contemplar com seus olhos a presença do Senhor ressuscitado.
Primeira aparição:
As portas do lugar onde se encontravam os discípulos estavam fechadas por medo dos judeus A expressão com que se inicia o texto, “na tarde daquele mesmo dia”, não é colocada por acaso. Pertence ao estilo narrativo do evangelista, que gosta de mostrar cenas naturais de contraste. Podemos imaginar um lugar pouco iluminado, onde se torna dificil até reconhecer os rostos dos outros, mesmo os mais próximos. É uma expressão que poderia representar a incerteza, a desilusão e o medo dos discípulos reunidos. Um medo do futuro, da novidade, do risco, da mudança, da eventualidade de perder alguma coisa. Por isso, se torna necessário manter “as portas bem fechadas”. O estado de ânimo dos discípulos é, tudo somado, algo de absolutamente normal, considerado o que Jesus passou na cruz. Talvez tenham necessidade de tempo para assimilar o que viveram ou de alguma coisa que possa reativar neles o desejo de reviver, de sair, de buscar a luz, de transformar este primeiro dia da semana em uma esperança ainda invisível. O sinal das portas fechadas representa a situação muito humana de quem busca tutelar a si mesmo e as poucas seguranças que possui. OS DISCÍPULOS ALEGRARAM-SE AO VER O SENHOR (Jo 20,19-31)
Veio Jesus e pôs-se no meio deles
Sem entrar no debate teológico-exegético a respeito do novo aspecto de Jesus, capaz de atravessar as paredes com um corpo de características diferentes, procuremos deter-nos no poder que Jesus tem de “entrar” naquele lugar de portas fechadas. Neste episódio, como em tantos outros, estamos diante da estratégia narrativa da mudança de situação caracterizada por uma transformação das circunstâncias, suscitada por uma iniciativa divina. No trecho depois que Jesus pronuncia as palavras paz a vós e mostra as suas mãos e o lado, o evangelista evidencia que, ao verem o Senhor, tristeza e medo se transformam em alegria (v. 20). É um texto esplêndido que propõe um itinerário a quem se lança na aventura da fé. Jesus teria podido escolher outro momento e outras circunstâncias para aparecer aos seus. No entanto, escolhe um momento marcado pelo medo dos apóstolos e pela ausência de um deles, Tomé, que será um protagonista-chave do texto. E exatamente nele eu gostaria de deter-me um momentinho enquanto analisamos a segunda aparição.
Segunda aparição:
Passaram-se oito dias. Alguém poderia perguntar-se: Por que deixou passar tantos dias? Por que não tirá-lo da dúvida logo para dissipar a incerteza de Tomé que tinha ouvido dizer vimos o Senhor? O nome de Tomé significa gêmeo. Dídimo é um termo grego que o evangelista usa para traduzir o aramaico Ta’oma’. Para além deste jogo de traduções, como acontece com frequência no quarto evangelho, se esconde uma intenção teológica. O gêmeo é uma cópia, é alguém que se assemelha a um outro. No texto, Tomé desempenha um papel caracterizado por dois significados: é dominado pela dúvida que em seguida resolve quando encontra o Senhor e é ao mesmo tempo nosso gêmeo, porque nos representa na história. É aquele que, em nosso nome, pode encontrar-se face a face com o Senhor ressuscitado, passando da incredulidade à mais alta profissão de fé que o evangelho de João recorda: Meu Senhor e meu Deus. Tomé viu e tocou as feridas de Jesus. O texto fala claramente dos sinais dos cravos: o ressuscitado tem um corpo que está marcado por uma história de dor e de morte. Por isso, Tomé é nosso gêmeo: toca com as suas mãos as feridas do corpo, reconhecendo não só encontrar-se diante de um homem vivo, mas de Deus em pessoa. É uma história de dor e de morte que se repete todas as vezes que não somos capazes de reconhecer as diferenças e a riqueza da diversidade. É uma história marcada por uma mentalidade dominante que explorou o nome de Deus para afirmar-se e crer-se depositária da verdade absoluta sobre o divino, chegando a agredir e matar somente para defender uma posição doutrinária. Este é o cenário dramático que durante a Idade Média se realizou no encontro com a religião islâmica e que hoje ainda se repete em alguns países onde as minorias não são toleradas.
Escutemos o Santo Pai Francisco
Provavelmente alguns pensarão que uma reflexão deste gênero, ou as aproximações
significativas que a Igreja fez, de modo particular o Papa Francisco, não têm muito a ver com a realidade crua que ainda hoje se apresenta nos países onde convivem cristãos e muçulmanos. Alguns pensam que falar de diálogo ou mostrar abertura a um possível encontro seja sinal de fraqueza e de perda da identidade. O Papa Francisco foi duramente criticado por certos setores da Igreja pelas atitudes de abertura mostradas para com outras confissões, lidas como gestos que diminuem a imagem e a reputação da Igreja e dos cristãos. Embora respeitando estas opiniões, eu gostaria simplesmente de afirmar que um simples gesto de comunhão e abertura se torna mais poderoso, eloquente, eficaz e profético do que o desejo de uma autoafirmação muitas vezes baseada na autorreferencialidade. Recentemente, a propósito de sua viagem a Marrocos, o Santo Padre declarou que não há motivo de estar assustado pelas diferenças entre as várias confissões religiosas (Audiência geral, 03 de abril, Praça São Pedro). Como vocês sabem, o Santo Padre quis unir-se ativamente à celebração do 8º centenário do encontro entre Francisco e o Sultão al-Malikal-Kamil. Esta viagem, como a já feita aos Emirados Árabes, o testemunha claramente. O poderoso apelo ao diálogo e à edificação de uma sociedade aberta, plural e solidária, assim como a resposta que devemos dar diante da grave crise migratória, foram os temas centrais da sua mensagem. O Papa exortou fortemente a percorrermos juntos uma estrada que nos ajude a superar as tensões e incompreensões, abrindo-nos a um espírito de colaboração frutuosa e respeitosa (cf. Discurso do Santo Padre: encontro com o povo marroquino, com as autoridades, com a sociedade civil, com o corpo diplomático, 30 de março de 2019). Eu gostaria por isso, meus amados irmãos, de convidá-los a viver esta Páscoa à luz de tão grande evento. É verdade que uma escolha como a que o Papa propõe inclui certo risco e pode gerar em nós medo e incerteza, sentimentos muito semelhantes aos experimentados pelos apóstolos no cenáculo a portas fechadas. No entanto, é o próprio Pontífice que nos encoraja na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium: “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e suja por ter saído pelas estradas a uma Igreja doente pelo fechamento e pela comodidade de apegar-se às próprias seguranças(EG 49). Ouso fazer meu este convite e dirigi-lo a todos os frades da Ordem, às minhas amadas irmãs clarissas e concepcionistas e a todos os homens e mulheres de boa vontade que estão próximos da espiritualidade do Santo de Assis: saiamos, andemos ao encontro do diferente, abramos as portas para que entre ar novo, o sopro do Espírito (cf. Jo 20, 22) que nos pede para abrir os olhos a uma realidade nova e fascinante. Não nos limitemos a crer que isto seja um sinal de fraqueza ou de renúncia às
nossas convicções; pensemos antes que um mundo tão plural como este em que vivemos tem urgente necessidade de gestos eloquentes e proféticos que eduquem para uma santa e civilizada convivência. O poverello de Assis foi um sinal para a sua época e continua sendo depois de oito séculos. Não podemos contentar-nos com comemorar um evento como este, se o nosso coração não se abre à experiência do outro. Viver a Páscoa neste ano significa seguir o itinerário proposto pelo evangelho de João que, sem ignorar o medo e a tentação de fechar as portas, nos mostra que o evento da ressurreição de Cristo é capaz de transformar a nossa tristeza em alegria (cf. Jo 16, 16) e o nosso medo na coragem de testemunhar com a palavra e a vida que Jesus Cristo ressuscitou e que ele é o Senhor e nosso Deus (cf. Jo 20, 28).
Boa e santa Páscoa a todos!
Roma, 14 de abril de 2019 – Domingo de Ramos
Frei Michael Anthony Perry, OFM
Ministro Geral e Servo
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