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Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o extremo.

Introdução


Jesus, antes de partir, estava ciente de que soara a hora de consumar sua missão: consolidar a criação da nova história e da nova humanidade nascida, não mais da lei, das tradições e nem mesmo do bom comportamento dos homens, mas através da Paixão do Pai que Ele deverá testemunhar até a morte e morte de Cruz. Por isso e para isso, desejava ardentemente encontrar e instituir um modo novo através do qual pudesse entregar e confiar aos seus discípulos e até o fim do mundo esse Mistério de salvação.

Este modo Ele o encontrou na véspera de partir deste mundo quando confiou aos seus discípulos os três grandes Atos ou mistérios de sua nova e eterna presença na Igreja e no mundo: o mandamento de amar como Ele os amou, de fazer o memorial de sua Ceia e de pastorear seu rebanho através do sacerdócio ministerial.





I. DO NOVO E INAUDITO MANDAMENTO DO AMOR

A primeira obra ou mistério foi o mandamento do amor. Na verdade, este mandamento já existia e era muito conhecido tanto pelos judeus como até mesmo pelos pagãos (Cf. Lv.26,3-4). Jesus, porém, como já o havia anunciado por diversas vezes durante seus três breves anos de vida pública, ele viera para inaugurar um novo mandamento do amor. Por isso, agora, na despedida, ele o entrega e o confia a modo de testamento, solene e oficial: “Como o Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor... Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 9-13).

Na verdade, duas são as novidades que Jesus introduz no velho mandamento do amor, ambas inauditas. A primeira é a de amar como Ele ama. Isto inclui também e principalmente os inimigos. A segunda – coisa de pasmar céu e terra – é que não é mais um cordeiro ou bezerro que é sacrificado em favor dos homens, nem mesmo um homem ou anjo, mas o próprio Deus. Sim, Ele é que toma a iniciativa de se dar, de se entregar até a morte e morte de Cruz. Se os pagãos adoravam e serviam a deuses que os exploravam, exigindo-lhes, por vezes, o sacrifício até mesmo de pessoas – virgens e crianças – com o nosso Deus é o oposto: Ele, o Criador, o Pai é quem se sacrifica pelos seus, pelas suas criaturas, pelos seus filhos. “Pelos seus” significa todos, também e principalmente seus inimigos. Eis o sentido da exclamação: “Desejei ardentemente comer convosco esta Ceia da Páscoa antes de sofrer...” (Lc 22,15)

Mas, qual a razão de tão inédito gesto e atitude? Por que tanto desprendimento? A razão é muito simples. É que nós somos a alma de sua alma, o sangue de seu sangue, a vida de sua vida. Como mãe, distante de seu filhinho, muito mais Deus, distante de nós, seus filhinhos prediletos, tem necessidade de fazer tudo para estar conosco. Quem compreendeu muito bem e sentiu de modo muito intenso e profundo esse amor foi São Francisco. Por isso, “tomado pelo espírito da Paixão do Senhor, logo que ouvia falar do amor do Senhor, ele se empolgava, ficava comovido e inflamado, como se a voz que ressoava exteriormente fosse um arco a fazer vibrar internamente as cordas do seu coração e exclamava: ‘Eis por que é necessário amar muito o amor daquele que muito nos amou’” (1B IX,1)

Esta é, também, a razão pela qual também nós devemos nos amar e amar aqueles que julgamos ou costumamos chamar de “inimigos”, mas que, na verdade são nossos melhores amigos, uma vez que nos ajudam a ver e a encontrar neles, muito mais que nos amigos, o próprio Deus, vivo e verdadeiro, que é Amor, Caridade, Doação. Por isso, dizia o Senhor Jesus: Amai vossos inimigos fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam (Mt 5,44)

Vendo e pensando este dito, dizia São Francisco: "Atendamos todos, Irmãos, ao que diz o Senhor: Amai vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam. Pois Nosso Senhor Jesus Cristo, cujos vestígios devemos seguir, chamou de amigo o seu traidor e livremente se ofereceu aos que o crucificavam. Por isso, são nossos amigos todos os que injustamente nos infligem tribulações e angústias, vergonha e injúrias, dores e tormentos, martírio e morte. A estes devemos amar muito, pois, disso que nos infligem, temos a vida eterna (RNB 22, 1-4).

Eis, pois o princípio da nova ordem, do novo ordenamento da Humanidade, o tão falado novo céu, nova terra, de São João (Cf. Ap 21). Há, porém, uma exigência para que este princípio vingue e se instaure no coração dos homens e da sociedade humana: “odiar o pai, a mãe ... e a própria vida” (Lc 14,25-27). São Francisco, em vez de “própria vida”, fala assim: “E tenhamos em ódio nosso corpo com seus vícios e pecados; pois, quando o corpo vive carnalmente, o diabo quer nos tirar o amor de Jesus Cristo e a vida eterna e perder-se a si mesmo com todos no inferno. Pois, por nossa culpa, somos fétidos, míseros e contrários ao bem; prontos, porém, e voluntariosos para o mal” (RNB 22,1-6).

Quando Francisco, juntamente com os medievais, fala em corpo não está evidentemente pensando no corpo físico-biológico, mas sim em nosso eu carnal, centrado em si mesmo, girando sempre em torno de seu pequeno “eu”, inimigo do grande Eu.

O grande Eu, entendemos aqui, aquela nova pessoa que nasceu em nós com a graça do encontro com Cristo no Batismo e depois, para nós franciscanos, com o vigor, o entusiasmo, a alegria da gratuidade do encontro com Francisco e do chamado à Ordem. Infelizmente, no entanto, em vez disso, estamos sempre procurando meios e estratégias para defender e proteger com unhas e dentes nosso pequeno eu, impedindo, assim, que nosso grande e verdadeiro Eu cresça e amadureça; fugimos de tudo quanto possa feri-lo; alimentamo-lo com nossas vaidades e nosso mundanismo espiritual (EG 93-97). Nos preocupamos com o seu futuro, com medo de prejudicá-lo; nos entristecemos quando não conseguimos satisfazê-lo; buscamos apenas o que lhe agrada, rejeitando tudo o mais que lhe é diferente, adverso e hostil.

Não temos mais o entusiasmo e o vigor da fé do Batismo e da Profissão franciscana acerca desse novo Eu. Não cremos que esse grande Eu, uma vez crescido e fortalecido, seria a fonte de nossa verdadeira felicidade e realização. Ao contrário, cremos mais nas ciências do que nele.

Nos denominamos seguidores de Jesus Cristo, mas ignoramos ou não queremos fazer o que Ele ensinou e fez. Esquecemos que Ele nunca deu vez ao seu pequeno eu. Lembremos como, desde o começo de sua vida pública, a partir do deserto, até seu último suspiro, nunca cedeu ao seu pequeno eu para sempre assumir e fazer tão só e unicamente a vontade do Pai.

Por isso, antes de partir quis pôr à disposição de todos, este caminho, instituindo o novo e inédito mandamento do amor juntamente com o mistério da Eucaristia: “Tomai e comei, isto é o meu corpo ... Tomai e bebei, isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança que será derramado em favor de muitos” (Mc 14,23-24). Jesus não diz, este é meu ideal, minha moral, minha doutrina! Ou seja, neste pão e neste vinho santificados pela sua Palavra está Ele mesmo.

Esta foi, é e será sempre a maior e a melhor clínica de todo e qualquer humano. Pois Jesus e seu caminho é o homem de todos os homens, o mais belo de todos os homens, o homem que todos, embora muitos não saibam, desejam e querem ser. E foi assim, deste modo que se clinicaram os primitivos cristãos e franciscanos. Sabiam muito bem que a busca do pequeno eu era a principal fonte de todas as divisões interiores e exteriores e, consequentemente, de todas as neurose e bloqueios psíquico-emocionais. Por isso, em vez de fazer mil rodeios e complicações, atacavam direta e imediatamente apenas esse ponto nevrálgico de sua vida. Em vez de se perderem na confusa terminologia da “valorização da pessoa”, do “desenvolvimento dos próprios dons e talentos”, no “direito de cada um sentir-se realizado” diziam, simplesmente: “fazer cordialmente a vontade de Deus”, expressão que explícita ou implicitamente recheia todas as páginas do Novo Testamento e das Fontes Franciscanas. Pois, não há maior saúde espiritual, salvação, do que substituir o vão e pequeno eu pelo EU de Cristo, o nosso bem, “todo o bem, o sumo bem, o bem inteiro, o único bem” (LDA 11).


I. DA EUCARISTIA, NOSSA REGRA E VIDA

Além do mandamento do Amor, Jesus na Última Ceia entrega aos seus discípulos o memorial de sua Paixão. Assim, sempre que reunidos em seu nome, para renovar este mistério, torna-se presente o inaudito mistério (obra) do amor de Deus. Assim, pode-se e deve-se dizer da Eucaristia o que a tradição da Igreja diz de toda a Liturgia: “é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte de onde emana toda a sua força” (SC 10).

Quem compreendeu o profundo significado deste memorial foi São Francisco. A Eucaristia está para ele e para os primitivos frades – para a Ordem, enfim – assim como a fonte está para o rio. De fato, como a Igreja nasceu da Eucaristia, na Última Ceia, também a Ordem nasceu quando certo dia, ouvindo a Missa, na igrejinha da Porciúncula, Francisco e seus dois primeiros companheiros – desejosos de saberem como seguir Jesus Cristo crucificado - ouviram o anúncio que Jesus fez aos Apóstolos: que deviam observar seu Evangelho, indo pelo mundo sem nada de próprio, desprendidos de tudo a fim de anunciar a Paz e o Reino de Deus (LTC ).

Foi então que Francisco exultante de alegria levantando-se, cheio de júbilo, exclamou: “É isso o eu quero, é isso o que eu procuro, é isso o que eu desejo fazer com todas as fibras do coração” (1C 22). E depois, voltando-se para os dois companheiros, acrescentou: “Irmãos, esta é a vida e a nossa Regra e a de todos que quiserem juntar-se à nossa companhia. Ide, pois, e realizai plenamente como ouvistes” (LTC 8).

Há, pois, uma semelhança muito grande e íntima entre a origem e o florescimento da Ordem com a origem e o florescimento da Igreja primitiva uma vez que ambas nasceram e cresceram a partir e ao redor do memorial do Senhor. Dessa se lê, como já vimos, que foi durante na Última ou Primeira Ceia que Jesus fundou a Igreja instituindo-lhe um novo sacerdócio e dando-lhe uma nova Regra de Vida, o novo e inaudito mandamento: amar todos, também os inimigos (Cf. Jo 17).

Plínio, o jovem governador romano da Bitínia, na Ásia Menor, em 111 escrevia: “Os cristãos estão habituados a se reunirem em determinado dia, antes do nascer do sol para cantar um cântico a Cristo que eles têm como Deus. De tarde se reúnem de novo em uma ceia em comum em favor dos mais pobres, chamada ágape” (Epístola a Trajano 10,96).

Também nossa Ordem, como já vimos acima, nasceu quando Francisco e seus dois primeiros companheiros ouviram a missa do Envio dos Apóstolos. A partir de então, a Missa passou a ser a alma, o coração, a regência, o sentimento maior do dia-a-dia daquela primitiva geração de frades, como se pode ver neste belo testemunho acerca de Francisco: “Do mais profundo de todo o seu ser, ardia com fervor para com o sacramento do Corpo do Senhor, pois ficava absolutamente estupefato diante de tão cara condescendência e de tão digna caridade. Achava que era um desprezo muito grande não assistir, pelo menos, a uma Missa cada dia, se pudesse. Comungava com freqüência e com tamanha devoção que tornava devotos também os outros. Como tinha toda reverência para com aquilo que se deve reverenciar, oferecia o sacrifício de todos os seus membros e, ao receber o Cordeiro imolado, imolava o espírito com aquele fogo que sempre ardia no altar do coração” (2C 201).

Por isso, também, a Eucaristia sempre foi colocada como o primeiro e o principal ato do dia. Era a Regra, o princípio que animava, orientava e formava aqueles frades no seu dia-a-dia tanto na vida fraterna como na vida apostólica. Conta-se, por exemplo, que Frei Egídio partia para suas lides diárias somente depois de ter ouvindo a Missa. Certo dia, depois de ter levado lenha para uma senhora, esta quis pagar-lhe mais do que o combinado porque descobrira que ele era frade. Ele, então, disse: “Não quero que me vença a avareza”. E assim, não só recusou o que ela queria dar-lhe, mas até deixou–lhe a metade do preço combinado” (VE 11).

E essa é a fé do nosso povo simples, como se pode ver neste canto tão conhecido: “As lições que melhor educam na Eucaristia é que nos dais”. A esse respeito, lembro-me ainda de um fato marcante de minha infância, 70 anos atrás. O pai de uma família vizinha fora à pé à missa fazer a primeira sexta-feira do mês na igreja distante três quilômetros. Na volta, próximo de casa foi atacado e agredido violentamente por outro vizinho. O motivo era desavenças por causa de animais que haviam invadido as terras e estragado as plantações. Perguntado pela esposa e filhos porque não reagira, não se defendera respondeu: “Não podia, pois estou voltando da missa, da comunhão”.

De fato, toda a vida de Francisco, no seu dia-a-dia, foi uma vida vivida no júbilo, no vigor e no espirito da Eucaristia. Lembremos aquela pérola de oração que inventou a fim de com ela recordar sempre de novo seu encontro com o seu Senhor: “Nós vos adoramos...”. Lembremos t-ainda que, a exemplo do Senhor, também ele, na véspera de sua partida para o Pai, quis ouvir o Evangelho da Última Ceia (1C 110).

Para Francisco, portanto, a Eucaristia não era uma devoção da piedade particular, onde ele podia estar sozinho diante de Deus desejando e procurando satisfazer-se em consolações pessoais; não era somente um ato litúrgico, onde Cristo se torna presente para ser por nós adorado e honrado. Mas o que, então?

Antes de mais nada a missa era aquilo que Cristo mesmo disse e fez naquela última ceia: “Como desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa... e tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o extremo (Jo 13,1). Assim, celebrar a Eucaristia é comungar do ardente desejo, da inaudita Paixão de um Deus que se faz comida, bebida para seus companheiros e para todos os homens; comungar do sumo de todas as tentativas e esforços para entregar-se aos homens a fim de poder estabelecer com eles uma ceia eterna, um sacrum convivium. Daí haver escrito para seus Irmãos:


Pasme o homem todo, estremeça o mundo inteiro e exulte o Céu, quando, sobre o altar, na mão do sacerdote, está o Cristo, o Filho do Deus vivo! Ó admirável grandeza e estupenda dignidade! Ó humildade sublime! Ó sublimidade humilde! O Senhor do universo, o Deus e o Filho de Deus, assim se humilha e se oculta sob a módica fórmula de pão para a nossa salvação! Vede, Irmãos, a humildade de Deus e derramai diante d’Ele os vossos corações; humilhai-vos também vós para que sejais exaltados e por Ele” (CO 26-28).


Como e quão longe estamos nós deste sentimento! Diante de um Deus que não apenas se deixa, mas também pede, ordena à sua criatura que o coma (LS); que se abaixa a modo de servo e escravo para lavar-lhe os pés, que a ama ao ponto de morrer na cruz por ela, sim, tudo isso não nos espanta, não nos estremece, não nos engasga mais!

Se antes o Filho de Deus não se envergonhara de assumir e viver nossa condição humana, finita, limitada, vil e pecadora – tornando-se um desconhecido e menosprezado nazareno - agora quer ir mais longe. Para levar sua Paixão a todos os homens de todos os tempos bem como a todas as criaturas, também às mais ínfimas, como um grãozinho de areia, transubstancia-se num pedaço de pão e num pouco de vinho; vira “matéria”, a realidade mais baixa ou vil entre todas as criaturas, a menos poderosa e expressiva. Que se transformasse pelo menos numa flor, numa pomba ou quem sabe, num inocente cordeirinho! Mas, não! Se outrora viera como criança, como um nazareno, como Cruz, agora vem como pão e vinho a fim de poder ser fácil e deliciosamente comido e tomado.

Compreende-se, então a convocação de Francisco: Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que não reconheceis a verdade e não credes no Filho de Deus? Eis que todos os dias, Ele se humilha, assim como quando desceu do trono real para o útero da Virgem; cada dia, vem a nós, sob a aparência humilde; cada dia desce do seio do Pai sobre o altar, nas mãos do sacerdote. E como se mostrou aos Santos Apóstolos em verdadeira carne, assim, de igual modo, se mostra a nós no pão sagrado. E assim, vendo a sua carne, eles viam apenas a carne d’Ele, mas contemplando-O com os olhos espirituais, criam ser Ele o próprio Deus; assim também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos corporais, vejamos e creiamos firmemente ser d’Ele o santíssimo corpo e sangue vivo e verdadeiro. E desse modo, o Senhor está sempre com seus fiéis, como Ele mesmo diz: Eis que estou convosco até a consumação do século. (15).


Conclusão


Devemos reconhecer, hoje, que a Eucaristia não é mais a primeira Regra, a principal forma de Vida do nosso dia-a-dia, capaz de nos libertar da busca ensimesmada do nosso pequeno eu, impedindo que cheguemos ao grande EU. Talvez, ainda não despertamos para essa grande troca ou intercâmbio que nos é oferecido quando vamos comungar. O ministro nos diz: “Eis o Corpo de Cristo” e nós respondemos “Amém!”, isto é, “Sim, Senhor”, eu te recebo, te quero, te acolho, “te comungo” para que o teu Eu, tua história, sejam meu eu, minha história; sim, te comungando estou comungando a nova humanidade, a nova criação; te comungando estou e quero assumir tua missão, tua nova humanidade, tua nova criação em mim, em todos e em tudo.


II. DOS SACERDOTES POBREZINHOS


Além do mistério do novo mandamento do seu Amor e do seu Corpo e Sangue, na sua despedida, Jesus institui, também, o mistério, o sacramento do sacerdócio ministerial, ordenando seus Apóstolos a serem os pastores, ministros e guardiães do novo Povo de Deus.

São Francisco, de novo, como sempre, também aqui, é surpreendente. Em seu Testamento, por exemplo, fala em sacerdotes pobrezinhos (T 7).

A quem estaria se referindo? Aos membros do baixo clero, bastante numeroso em seu tempo? Talvez. Mas, provavelmente, esteja vendo muitos sacerdotes que, naquela época, levavam uma vida irregular, amancebados, metidos em negócios desonestos, falcatruas, etc. Mas, então, por que os chama de pobrezinhos e não de hipócritas e mercenários? No contexto da frase encontramos a resposta: O senhor me deu tal fé nos sacerdotes...

“Tal”, significa “tanta”, enorme, profunda, sem medida, misteriosa, gratuita. E sua reflexão acerca deste mistério continua de modo surpreendente. Basta conferir em seu Testamento (Cf. T 6-11). Mas aqui, para nosso assunto, é suficiente esta conclusão: E neles não quero considerar pecado, porque neles diviso o Filho de Deus” (T 9).

Ou seja, a visão de Francisco acerca da presença do mistério do Senhor, na pessoa do sacerdote, é tão diligente, limpa, cristalina e profunda que nele não quer considerar pecado. Considerar é uma maneira de olhar que vê e enxerga longe, fundo; um ver que vai para além das aparências; um olhar que procura ver, discernir contemplar a essência, o coração, e que, por isso, ignora todo o resto, tudo o que não venha ou não pertença ao caso. É o olhar do bom e experiente garimpeiro, por exemplo, que vai além do olhar dos ignorantes e inexperientes consumidores; o olhar do bom educador que procura ver o coração do educando. Não importa, para eles, que a pedra preciosa esteja no meio da sujeira ou do estrume; que o educando faça coisas erradas. Seu olhar limpo vê a bondade originária. Daí, para Francisco, surgem algumas conclusões lógicas e arrojadas:


- “Mesmo se me perseguirem quero recorrer a eles”

- “Não quero jamais pregar para além da vontade deles”;

- “Neles só quero ver o santíssimo Corpo e Sangue do Senhor que só eles recebem e administram”;

- E esses santíssimos mistérios quero honrar e venerar acima de todas as coisas...”


Mas, além desse argumento profundamente ligado à pessoa de Cristo pobre e crucificado, que “tem” de viver na pessoa do sacerdote decadente, Francisco talvez esteja também pensando e vendo a vida, a missão dura, difícil e angustiante desses sacerdotes que ou quando, além de carregar os pecados dos fiéis, de sua igreja, do seu rebanho a eles confiado, tem de carregar a vergonha, a ignomínia de seus próprios pecados. Sim, como, nestes casos, é duro e doloroso para um coração que faz a experiência de ser o querido, o amado, o consagrado de Deus, proclamar “Intoibo ad altare Dei”, isto é, “Vou entrar no altar, no santuário de Deus”, ou ainda, fazendo a vez Dele, exclamar ‘Tomai e comei... Tomai bebei”!

Por isso, a expressão “pobrezinhos” brota de seu coração como sentimento de uma mãe que, cheia de dó e compaixão, diante de um filho, já adulto e doente ou perdido nas drogas exclama: “Vem cá meu filhinho, meu pobrezinho!”

Vale a pena ouvir a respeito desse sentimento o relato de Estêvão de Bourbon: Ouvi, ainda, que o Bem-aventurado Francisco, ao entrar em certa vila na Lombardia e ali se espalhasse a fama de sua santidade, um herege, julgando-o um homem simplório e querendo confirmar sua seita e seus adeptos que para aí haviam acorrido, ao ver o sacerdote da vila aproximando-se, gritou bem alto: Olha, bom homem, o que dizes deste sacerdote que cuida desta paróquia e, no entanto, mantém uma concubina, ficando claro a todos que ele está cheio de pecados? Pode, por acaso, ser puro o que ele trata e administra com suas mãos?”

Percebendo a malícia do herege, o Santo perguntou: “É do sacerdote desta vila que dizeis tais coisas?” Como respondesse que sim, Francisco dobrou os joelhos no lodo e beijando as mãos do sacerdote disse: “Estas mãos tocaram o meu Senhor. Seja o que for, nada pode tornar imundo o Senhor ou diminuir-Lhe a virtude. Em honra do meu Senhor eu honro o seu ministro. Para ele pode ser mau, para mim, no entanto é bom”. Diante disso, os hereges ficaram completamente confundidos (TM 14 - 10-14).


O mesmo sentimento, fraterno, mas rigoroso, ele o manifesta em sua Carta à toda a Ordem, dirigindo-se então e explicitamente a todos os sacerdotes:


“Ouvi, Irmãos meus: Se a Bem-aventurada Virgem é honrada, como é digno, por ter trazido no seu santíssimo útero o próprio Filho de Deus; se o Bem-aventurado Batista estremeceu e não ousou tocar a santa cabeça de Deus; se o sepulcro no qual ficou por algum tempo é venerado, como deve ser santo, justo e digno aquele que toma nas mãos, recebe na boca e no coração e dá o Senhor aos outros para tomar, o qual já não mais morrerá, mas viverá glorificado na eternidade e a quem os anjos desejam contemplar” (CO 21-22).



E, seguindo, um pouco além, exorta:


Vede a vossa dignidade, irmãos sacerdotes! Sede santos porque Ele é Santo! E, como o Senhor Deus vos honrou acima de todos, por causa deste ministério, assim também vós, amai-O, reverenciai-O e honrai-O. É uma grande miséria e uma lamentável fraqueza, quando O tendes assim presente, e vós cuidais de outra coisa em todo o mundo. (CO 23-25).

Conclusão


A fé nos “sacerdotes pobrezinhos” levava Francisco a expressar um dos mais nobres e fecundos sentimentos humanos: a compaixão, a dor, vertida, às vezes, em prantos e lágrimas. Sim, diante de um Filho de Deus que se faz e quer ser Filho do homem a fim de comungar da alegria de nossa fragilidade, como outrora Pedro, Francisco chora o amor que não é amado.

Talvez seja esta uma das lições profundamente evangélica e franciscana, que nós hoje precisamos aprender, de novo. Não importa (!?) que neguemos nosso Mestre e Senhor, fato quase sempre inevitável, devido nossa fragilidade. Importa sim que o lamentemos com lágrimas e prantos que brotam do fundo do nosso coração.

Assim, os pastores da Igreja são aceitos e reconhecidos como tais não por seus atos heroicos ou por serem santos, mas justamente porque não têm a pretensão de sê-lo; porque estão dispostos a reconhecer sua fraqueza na confissão da própria fé. E se muitas vezes os pastores da Igreja não são aceitos é justamente porque não são capazes de se humilhar para reconhecer que erraram e que continuam pecadores.


Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini

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