O jovem Francisco foi um legítimo filho da burguesia de Assis, ambiente marcado pela cobiça dos comerciantes e a avareza do próprio pai, o vendedor de tecidos. Foi um jovem festeiro como os outros de sua idade e inclinado às aventuras das cavalarias. “Em sua juventude, viveu Francisco no meio dos filhos deste mundo e como eles foi educado. Depois de aprender a ler e a escrever, recebeu emprego rendoso no comércio.” (BOAVENTURA, 2016, p. 13).
Mesmo filho desta cultura, desde o início desenvolveu traços de personalidade que o tornava especial em meio aos outros, como a mansidão, gentileza, paciência, afabilidade, liberalidade. Nunca se entregou obstinadamente aos desejos da ganância. “Vivia num ambiente marcado pela cobiça dos comerciantes, embora gostasse de obter seus lucros, jamais cedeu desesperadamente ao dinheiro.” (BOAVENTURA, 2016, p. 13).
Aconteceu que um dia, Francisco dispensou um pobre sem a esmola que pedia por amor de Deus. Caindo em si, refletiu sua atitude e sentiu-se insatisfeito com o que fez e prometeu a si e ao Senhor não mais negar ajuda na medida de suas possibilidades a quem o pedisse por amor de Deus. “Se aquele pobre tivesse pedido algo em nome de algum conde ou barão, com certeza o terias atendido, quanto mais não o deverias ter feito pelo Rei dos reis e Senhor de todos?” (LEGENDA DOS TRÊS COMPANHEIROS, 1978, p. 14).
Francisco a esta altura ainda não compreendia os planos de Deus a seu respeito, não pensava na sua vocação, pois andava distraído de mais com os negócios de seu pai e não nos seus ou nos planos de Deus. Nesse sentido, destaca São Boaventura:
Por essa época, Francisco ainda ignorava os planos de Deus a seu respeito, pois não havia aprendido a contemplação das coisas do alto, levado que era sempre em direção às coisas externas por ordem de seu pai, nem havia adquirido ainda o gosto pelas coisas de Deus, atraído para as coisas inferiores pela corrupção que todos nós temos desde o berço. (BOAVENTURA, 2016, p. 14).
Muitas experiências vividas intensamente podem transformar o coração e a mentalidade de uma pessoa displicente ou enrijecida nos seus sentimentos. Por vezes pode ser uma intensa alegria, mas na maioria dos casos essa não deixa grandes marcas transformadoras e logo cai no esquecimento. Situações mais difíceis, de dor e abatimento trazem não tão raro melhores lições para vida e podem conter conteúdo de inteiro amadurecimento à personalidade, pois provocam o encontro do indivíduo consigo mesmo e com Deus. Francisco de Assis experimentou essa realidade profundamente. Tomás de Celano expõem da seguinte maneira:
[...] a misericórdia divina, subitamente desperta sua consciência por meio de uma angústia na alma e de uma enfermidade no corpo, conforme as palavras do profeta: “Hei de barrar teu caminho com espinhos e cerca-lo de muralhas”. Prostrado por longa enfermidade, que é o que merece a teimosia dos homens que não se emendam a não ser com castigo, começou a refletir consigo mesmo de maneira diferente. (CELANO, 2004, p. 188).
Já melhor de saúde, Francisco começa a andar pela casa, um dia saiu para rua, mas depois do que experimentara interiormente com aquela brusca enfermidade, se sentia diferente e o que até pouco tempo lhe trazia satisfação e contentamento, agora parece que perdeu o sabor. Sentia que “nem a beleza dos campos, nem o encanto dos vinhedos, nem coisa alguma agradável de se ver conseguia satisfazê-lo.” (CELANO, 2004, p. 188).
Ele começava a elaborar em sua mente todas essas coisas, mas “ainda não tinha experiência em interpretar os divinos mistérios e ignorava a arte de ir além das aparências visíveis até as realidades invisíveis.” (BOAVENTURA, 2016, p. 15). Deus não se cansa em sua graça e bondade e ‘visitou’ o jovem Francisco na fé e na vida.
O rapaz, sabendo de um nobre de Assis que marcharia para Apúlia armado militarmente a fim de angariar mais riquezas e fama, logo decide alistar-se e investir junto nessa missão. Mas aconteceu que durante a noite, Francisco teve um sonho e o Senhor lhe pergunta, agora em tom mais ‘familiar’: quem poderia fazer mais por ele, o Senhor ou o servo? Sua resposta foi logo: o Senhor. A voz no sonho lhe diz mais incisivamente: por que vai trocar o Senhor pelo servo? A riqueza de Deus pela pobreza do homem? E Francisco já sentindo o chamado, mas ainda não compreendendo, pergunta: Senhor, o que queres que eu faça? E o Senhor lhe diz: volta para tua terra. “Porque isso que viste em sonhos tem um sentido todo espiritual, e há de realizar-se contigo não por interferência humana, mas por disposições divinas.” (BOAVENTURA, 2016, p. 15).
De fato, Francisco viveu uma transformação e os negócios de seu pai já não tinham o mesmo valor. Passou a desejar profundamente a pátria celeste, sentido último de sua vida. Agora começou a refletir sobre sua vocação ainda que não soubesse como fazer. Dedicou-se à oração e sentia que o “intercâmbio espiritual começa pelo desprezo do mundo e que para alguém ser soldado de Cristo é preciso já ter conseguido a vitória sobre si mesmo.” (BOAVENTURA, 2016, p. 16).
Um dia, andando a cavalo na planície de Assis, encontrou um leproso. Francisco ficou horrorizado, de fato ele sentia repugnância da lepra. Pelo propósito de perfeição que abraçara e da necessidade de vencer-se, desceu do cavalo, deu esmola e um beijo no leproso. Montou a cavalo e olhando em toda volta não o via mais, não via mais ‘sua repugnância’, mas desejava fazer coisas ainda melhores. Ele admirava-se com cada experiência, que na simplicidade dos fatos revelava a grandeza dos ensinamentos pela inspiração divina que continha. Francisco cantava louvores ao Senhor.
Cada vez mais frequentava lugares solitários, propícios à oração. Um dia na solidão apareceu-lhe Cristo Crucificado. Experiência tão forte e tão eficaz que a paixão de Cristo como que se gravou em sua alma e em seu coração. Em Jesus Crucificado, a espiritualidade de Francisco ia sendo edificada segundo a vontade de Deus. Ele revelou pouco antes de morrer essa experiência e que logo tinha compreendido que se dirigira a ele aquela passagem que diz: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me.” (Mt 16,24)
Intensificou as esmolas e o amor à pobreza. Queria dar mais que dinheiro, queria ‘dar a si mesmo’, como evidencia Boaventura (2016, p. 17). Francisco ainda costumava ajudar sacerdotes pobres doando alfaias e paramentos, toalhas para o altar.
Uma vez peregrinou ao túmulo de São Pedro. Reparou no grande número de mendigos em frente à igreja, escolheu um dos pobres e trocou de roupas, vestiu os farrapos e passou todo o dia na companhia deles. Trazia na carne a cruz de Cristo e nutria especial amor pela pobreza. “Tudo isso se deu quando Francisco ainda vivia e se vestia como um leigo no mundo.” (BOAVENTURA, 2016, p. 18).
(Continua)
Mauricio Ferreira da Silva – Vocacionado Franciscano
BOAVENTURA. S. Legenda Maior: vida de São Francisco de Assis. São Caetano do Sul, SP: Santa Cruz Editora e Livraria, 2016.
CELANO, T. Primeira Vida de São Francisco. In: Fontes Franciscanas. Santo André, SP: Editora Mensageiro de Santo Antônio, 2004.
Legenda dos três companheiros. Petrópolis: Vozes/CEFEPAL, 1978.
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